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Marcelo Ninio

No Oriente Médio

Perfil Marcelo Ninio é correspondente em Jerusalém

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Visita à "porta da paz" na Síria

Por Marcelo Ninio
24/07/12 13:47

Rebeldes sírios pouco após a tomada da fronteira de Bab al Salam (Foto: Marcelo Ninio)



BAB AL SALAM (SÍRIA)
– As notícias da morte iminente do regime sírio foram exageradas. Mas é inegável que os rebeldes fizeram avanços significativos na última semana. A guerra civil finalmente chegou ao centro das duas principais cidades do país, Damasco e Aleppo. Na capital, uma explosão no centro nervoso da segurança da ditadura matou pelo menos quatro altos oficiais. Os dois principais postos da fronteira com a Turquia foram abandonados pelos soldados do ditador Bashar Assad, derrotados em combates com os rebeldes. Em Bab al Salam (porta da paz, em árabe), onde passava grande parte do comércio entre os dois países, opositores armados com fuzis Kalashnikov fazem o sinal da vitória pisando em retratos despedaçados de Assad. Quando visitei a fronteira, pouco após a conquista, eles batiam papo preguiçosamente nos escritórios refrigerados da aduana. Estranhamente, não havia qualquer sinal de estresse e a “porta da paz” justificava seu nome.

Parece o começo da revolução na Líbia, mas as semelhanças param por aí. Na Líbia, os insurgentes conquistaram rapidamente uma enorme fatia do território, o que lhes deu fôlego para se organizar. Na Síria, o regime responde com chumbo grosso à revolta em quase todo o país e não permitiu o estabelecimento de uma zona de segurança, como na Líbia. Em Damasco, a ofensiva rebelde foi rechaçada e o regime reassumiu o controle das áreas-chave.

Mas a admissão do governo, pela primeira vez, de que possui armas químicas parece um sinal claro de que Assad sente-se cada vez mais encurralado. Por enquanto, nenhum dos lados tem condições de derrotar o outro. O desfecho é incerto. A eventual queda de Assad não significa o fim da violência. Com o sectarismo em alta, vislumbra-se um cenário como o da guerra civil no Líbano, com um país desintegrado em regiões controladas por diferentes facções. Ouve-se cada vez mais que Assad já teria se mudado para a cidade costeira de Latakia para estabelecer uma área protegida para os alauítas, a seita minoritária a que pertence sua família e grande parte da elite militar.

Outro dia eu viajava com dois sírios sunitas perto da fronteira, quando um rapaz, também sírio, pediu carona. Estranhei que os dois, geralmente falastrões e gozadores, ficaram em silêncio até o fim da viagem. Depois me explicaram: “Não confiamos. Ele é alauíta”.

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Assad, o (longo) começo do fim

Por Marcelo Ninio
18/07/12 22:26

Os combates travados no centro de Damasco e sobretudo o ousado ataque que atingiu o coração do aparato de segurança sírio nesta quarta-feira tornam possível vislumbrar, pela primeira vez, o começo do fim de 40 anos da ditadura Assad.

É só o começo. Pode durar dias, semanas e até meses, dado o poder de fogo do Exército sírio, a brutalidade demonstrada pelas milícias leais ao ditador Bashar Assad e o controle que o regime ainda mantem sobre a maior parte do território. Mas se ainda faltava alguma evidência de que o ditador está cada dia mais encurralado internamente, ela foi fornecida pelo ataque que matou o ministro da Defesa e o cunhado de Assad, espécie de eminência parda no círculo íntimo da ditadura.

Durante meses, analistas alertaram que a resiliência dos opositores que se arriscavam em protestos contra a artilharia pesada do regime era insuficiente para virar o jogo. E que isso só começaria a acontecer quando a revolta chegasse às maiores cidades do país, Damasco e Aleppo.

Era um discurso incentivado também pelo regime, que usava a relativa imunidade das duas metrópoles, mantida artificialmente a ferro e fogo, para sustentar o mito de que Assad ainda contava com amplo apoio popular.

É difícil prever qual será o efeito do ataque de ontem em Damasco, mas ele parece indicar que a ofensiva prometida pelos rebeldes para “libertar a capital” é mais do que bravata.

Um amigo estrangeiro que mora num bairro nobre de Damasco, e que até agora conseguia navegar na ilusória normalidade da capital entre restaurantes japoneses e academias de ginástica frequentadas pela elite, me contou que a cidade parou.

“Damasco virou Homs”, disse, em referência à cidade no centro do país que virou bastião da oposição e palco de alguns dos mais sangrentos atos de repressão do regime. “Há tanques no centro da capital e barreiras militares por toda a parte”.

Para esse amigo, que pediu para não ser identificado, a chegada devastadora dos confrontos à capital pode ser um golpe psicológico mortal para o regime, tirando do armário “a maioria silenciosa” que temia se voltar contra ele.

A questão-chave, porém, é se a escalada do conflito em Damasco abrirá as portas para deserções significativas no alto escalão.
Blindado externamente pelo apoio da Rússia, a ameaça real ao poder de Bashar Assad é a queda do escudo de segurança montado por seu pai, Hafez. Pelo visto, ele começou a desmoronar.

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Gaza, um mundo à parte

Por Marcelo Ninio
13/07/12 11:17

     

O “tapete vermelho” de Gaza: sem luz no fim do túnel (Foto: Marcelo Ninio)

GAZA – Um longo corredor gradeado faz a ligação entre o terminal israelense de Erez com a faixa de Gaza. A caminhada de mais de um quilômetro é solitária. O “tapete vermelho” (foto), com os moradores de Gaza ironicamente chamam o caminho, devido à coloração do piso, está vazio. Quem tem dificuldade para caminhar, agora pode fazer o percurso num carrinho de golfe, doado pela Turquia há poucas semanas.

Antes do bloqueio imposto em 2007 pelo  governo israelense, quando o grupo islâmico assumiu o controle de Gaza, milhares de trabalhadores se aglomeravam no corredor todos os dias a caminho do trabalho em Israel. O resultado foi desemprego em massa. Segundo a ONU, 80% dos moradores de Gaza dependem de ajuda humanitária.

Cinco anos depois, uma situação que parecia temporária virou o status quo. O Hamas age como governo e a divisão palestina é mais profunda do que nunca. O mais recente símbolo de soberania do grupo islâmico é a exigência de visto para estrangeiros que entram em Gaza. São poucos os que tem autorização de Israel para entrar, basicamente jornalistas, diplomatas e funcionários de organizações internacionais. O primeiro hotel cinco estrelas de Gaza, aberto no ano passado, está às moscas. 

As duas Palestinas são, cada vez mais, mundos à parte. Na Cisjordânia, o governo é secular, bebidas alcoólicas são servidas em restaurantes e há relações diplomáticas com o mundo. Em Gaza, o regime é islâmico e a sensação de isolamento é marcante. Até as placas de carros são diferentes. Recentemente, o Hamas criou a sua própria (foto), com a bandeira da Palestina. Entre os jovens, a maioria jamais saiu do pequeno território. O mundo é conhecido por meio da TV e da internet, as principais fontes de entretenimento, além da praia.

Placa de Gaza, mais um símbolo de soberania do Hamas (Foto: Marcelo Ninio)

A solução de dois Estados para o conflito entre Israel e os palestinos é um sonho distante. Na prática, hoje há três Estados que mal se falam e ninguém vê luz no fim do túnel.

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Tahrir, a praça da libertação islâmica

Por Marcelo Ninio
24/06/12 22:54

CAIRO – A festa que tomou conta do centro do Cairo neste domingo em comemoração à eleição para presidente de Mohamed Mursi, da Irmandade Muçulmana, só lembrava no tamanho a revolução de fevereiro de 2011. A icônica praça Tahrir (libertação, em árabe) estava completamente lotada, numa maré humana que se espalhou pelas ruas laterais e deu um nó no trânsito da cidade, já normalmente caótico.

A diferença em relação aos protestos que levaram à deposição de Hosni Mubarak é que desta vez não havia a mesma diversidade. Em 2011, muçulmanos, cristãos, seculares, religiosos e partidários de correntes políticas diversas se uniram contra o ditador. Hoje, a maré humana era predominantemente islamita e fazia questão de deixar isso claro. Numa das ruas do centro que foi tomada pela euforia, um grupo de jovens marchava em direção à praça Tahrir quando de repente parou. Numa coreografia espontânea, todos se ajoelharam no chão, na posição tradicional da oração islâmica. Era um show. Em segundos se levantaram e continuaram a algazarra, batendo bumbos e soprando cornetas como uma torcida de futebol.

Enquanto uma metade do país festeja, a outra está deprimida e preocupada. O Egito está totalmente dividido, como mostrou a vitória apertada de Mursi, com 51,7% dos votos. Um casal segurando bandeiras do Egito não escondia a alegria. Quer dizer, ela estava totalmente escondida pelo niqab, a máscara negra dos muçulmanos ultraconservadores, que deixa só os olhos à mostra. Ao lado do marido, o advogado Mostafa Mohamed, 27, disse timidamente que é “mentira da mídia” que as mulheres terão menos liberdades com o primeiro presidente islamita da história do Egito. “Ao contrário, um dos princípios do islã é proteger as mulheres”, me garantiu, sem querer dizer o nome.

 

Mustafa entre a mulher e o filho, Omar (Foto: Marcelo Ninio)

Uma garota vestida com uma camiseta do Bob Esponja olhava tudo com ar desconsolado. Emy Ahmed, 25, faz parte de um grupo jovem que fez campanha pelo boicote às eleições. Depois de participar dos protestos contra Mubarak e por democracia, não se conformava em ter que escolher entre um islamita e um membro do antigo regime, o ex-comandante militar Ahmed Shafiq, que perdeu por pouco. “A Irmandade Muçulmana diz que é democrática, mas sabemos que é só uma tática. Pularam no trem da revolução e agora vão tentar transformar o Egito numa teocracia, aos poucos”, disse. Emy sente-se derrotada e está tentando o visto para a Noruega, para onde quer se mudar. “Lá poderei me vestir como quiser”.

Em seu primeiro discurso, Mursi adotou um tom moderado, prometendo proteger os direitos da minoria cristã e das mulheres. Sua vitória por enquanto é principalmente simbólica. Os militares continuam monopolizando o Estado, depois de terem se apropriado por decreto de prerrogativas do presidente e do Parlamento. Mas não deixa de ser histórico: depois de 84 anos de existência, a maior parte deles na clandestinidade política, pela primeira vez a Irmandade Muçulmana passará pelo teste do poder. A metade deprimida dos egípcios tem pouca esperança que o grupo cumpra suas promessas de campanha.

 

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Crise e xenofobia no Egito

Por Marcelo Ninio
23/06/12 18:43

CAIRO – Aconteceu três vezes comigo nos últimos dias. Conversava com egípcios nas ruas do Cairo sobre a crise política no país quando fui acusado de ser um espião. Nada de muito incomum no mundo árabe, onde há uma longa tradição de atribuir todos os males ao Ocidente. No Egito, porém, eu jamais havia vivido isso. Verdade seja dita, logo apareceu alguém para espantar o paranóico e me defender.

Paranóias à parte, eles tem certa razão histórica para desconfiar das “boas intenções” das superpotências, vamos combinar. Mas nada justifica a xenofobia, que é a única definição que encontro para chamar um estrangeiro, só por ser estrangeiro, de espião.

Só depois fui saber de um anúncio transmitido pela TV estatal que promove abertamente a desconfiança. Um estrangeiro entra num café, começa a bater papo com um grupo de egípcios e ouve queixas sobre os problemas do país. Em seguida o forasteiro aparece mandando uma mensagem no celular. Ao fundo, uma voz cavernosa alerta: “Cuidado com o que você diz. Uma palavra pode salvar a nação”.  Veja o anúncio:


O terreno anda fértil para plantar paranóias. Egito viveu a semana mais instável desde a queda de Hosni Mubarak, há quase um ano e meio, numa série de reviravoltas que deixou o país à beira de um ataque de nervos.

Primeiro, o Parlamento é dissolvido e a Junta Militar amplia seus poderes por decreto. Depois, Mubarak é anunciado morto pela agência estatal de notícias e  logo depois “ressuscita”. Os dois finalistas da eleição presidencial, o islamita Mohamed Mursi e o general da reserva Ahmed Shafiq, se declaram vencedores. O resultado oficial da votação é adiado, alimentando suspeitas de fraude a favor do candidato preferido dos militares.

A comissão promete anunciar finalmente o novo presidente neste domingo. O suspense termina, a tensão continua. A divisão entre os egípcios é tão grande que a única certeza é que a instabilidade ainda deve se prolongar por muito tempo.

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Mubarak foi condenado, mas e seus "poodles"?

Por Marcelo Ninio
04/06/12 09:07

Suleiman (esq.), Shafiq, Tantawi: velha guarda intocada

Hossam Bahgat, que bem antes da revolução já era um dos mais combativos ativistas de direitos humanos do Egito, reagiu com sarcasmo à sentença de prisão perpétua do ditador Hosni Mubarak pela morte de centenas de manifestantes pró-democracia: “Quer dizer que os únicos crimes de Mubarak foram cometidos na última semana de seu governo?” E o resto do regime?

É uma pergunta retórica, claro. Se Mubarak fosse julgado pelos 30 anos em que ficou no poder, praticamente todo o governo atual iria para o banco dos réus. A começar pelo marechal Mohamed Tantawi, chefe da junta militar que assumiu as rédeas do país depois da queda do ditador.

Tantawi é uma figura inseparável do antigo regime. Durante 10 anos foi ministro da Defesa (cargo que ainda exerce) e ficou conhecido pela absoluta subserviência a Mubarak. Num telegrama famoso de 2008 da embaixada dos EUA no Cairo, revelado pelo Wikileaks, o marechal era descrito por jovens oficiais como o “poodle” do ditador.

Na época começavam a tomar corpo os rumores de que Mubarak preparava o filho Gamal para sucedê-lo no poder. Outros telegramas divulgados pelo Wikileaks mostram a insatisfação entre altos oficiais egípcios, incluindo Tantawi, com a perspectiva de ter um chefe sem formação militar, como foram todos os presidentes egípcios desde a fundação da república, em 1953. Uma das mensagens indica que os militares até aceitariam Gamal para não enfrentar Mubarak, mas que se o ditador morresse antes dariam um golpe e impediriam a sucessão faraônica.

Mubarak não morreu, mas a revolução de 2011 assinou seu atestado de óbito político, e ofereceu a chance ideal para que os generais colocassem seu plano em prática. Na euforia dos protestos da praça Tahrir, os militares eram vistos como aliados da revolução, até porque não usaram a força contra os manifestantes, como na Líbia, no Iêmen, no Bahrein e na Síria.

A euforia transformou-se em ódio. A junta militar, que prometeu deixar o poder depois de seis meses, continua lá. O aparato de segurança é o mesmo. E a eleição presidencial credenciou para o segundo turno um ex-comandante da Aeronáutica, Ahmed Shafiq, o último premiê nomeado por Mubarak, aumentando as suspeitas de que o antigo regime continuará vivo.

Caiu a ficha para os meninos da praça Tahrir. Aqueles mágicos 18 dias de protestos, que uniram o Egito e o mundo, foram uma ilusão. O que derrubou o ditador não foram os protestos, mas um golpe militar. A máquina do antigo regime continuou funcionando e foi decisiva para emplacar um aliado de Hosni Mubarak na finalíssima da eleição presidencial .

Esses foram os lamentos que ouvi de “revolucionários” deprimidos, que perambulavam pelo Cairo perplexos com o resultado da votação. Para eles, o sonho do novo Egito gestado no ventre da praça Tahrir se transformou no pior dos mundos: a sucessão de Mubarak será decidida entre Mohamed Mursi, da Irmandade Muçulmana, e o militar linha-dura Ahmed Shafiq. Nenhum dos dois é conhecido por ser um democrata.

O choque maior é pela chegada de Shafiq ao segundo turno. Sua simples candidatura já havia sido motivo de indignação. Ele chegou a ser desqualificado pela comissão eleitoral, mas a decisão foi revogada e ele voltou com tudo.

Agora, os revolucionários tendem a contrariar seus instintos e apoiar Mursi como voto de protesto a Shafiq, cuja vitória consideram um tapa na cara da revolução. Acima de tudo, tentam minar os alicerces do antigo regime, que continua inabalado.

Se os abusos do antigo regime fossem julgados por uma corte independente, outra figura poderosa do antigo regime seria presença certa no banco dos réus. Omar Suleiman, braço direito de Mubarak, o homem que anunciou sua renúncia na TV naquele dramático fim de tarde do dia 11 de fevereiro de 2011, chefiou o serviço de inteligência do Egito por 18 anos.

Suleiman está solto, ninguém fala em processá-lo. Ele sente-se intocável a ponto de ter lançado uma breve candidatura à Presidência, aplaudida por saudosistas do regime, mas depois abortada por uma decisão da Justiça.

Com seu bigodinho fino de vilão de cinema B, Suleiman era um dos cabeças do aparato de repressão interna. Segundo a imprensa norte-americana, foi um colaborador-chave da CIA no programa de detenções ilegais de suspeitos de terrorismo, que eram levados para interrogatórios no Egito, muitos sob tortura. Para os ativistas, portanto, Suleiman era um poodle não só de Mubarak, mas dos EUA. Por isso, estaria duplamente blindado.

A múmia em liberdade condicional: grafite revolucionário no Cairo (Foto: Marcelo Ninio)

 
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Futuro sombrio na Síria

Por Marcelo Ninio
29/05/12 19:38

Rebeldes sírios em Idlib, norte do país (Foto: Associated Press)

 

Hamadiya, a principal rua comercial de Damasco, passou o dia de portas fechadas. Assombrada por rumores e tomada pelo medo, como o resto da Síria. No coração do bazar mais famoso da Síria, as primeiras notícias eram de uma greve de comerciantes sunitas contra o regime, em solidariedade com as vítimas do pavoroso massacre de Houla, que deixou 108 mortos, sendo 49 crianças.

Uma ação de desobediência civil dessa magnitude no centro da capital e iniciada por comerciantes, tidos até agora como um dos pilares de apoio ao ditador Bashar Assad, seria um sinal significativo de que a maré poderia estar virando contra o regime, depois de 14 meses de revolta.

Hoje, conversando com um conhecido de Damasco, ouvi outra versão. Alguns comerciantes teriam fechado as portas sob a ameaça dos fuzis de “gangues” da oposição, que os forçaram a entrar em greve contra o regime. “Rumores se espalham como pólvora na Síria, e sempre acabam distorcendo a realidade”, disse ele, pedindo para não ser identificado por motivos óbvios. “Um boato começa de um lado da Hamadiya e quando chega no outro lado já é totalmente diferente”.

Se as notícias mudam de um lado a outro de uma única rua da Síria, imagine a dificuldade de separar fatos de versões nos relatos que atravessam a fronteira até a mídia estrangeira.

Seja qual for o motivo, o fechamento do bazar de Damasco mostra a guerra civil no coração da capital síria, que por meses manteve-se relativamente imune ao ciclo de violência iniciado em março do ano passado. Quando estive na cidade em setembro, o bazar ainda lembrava seu vibrante ritmo habitual, mesmo com várias regiões do país acumulando mortos à sangrenta estatística diária. Quase não havia turistas, os únicos estrangeiros que vi foram peregrinos iranianos. Mas o vai e vem continuava nas lojas e uma confeitaria no meio do bazar, que serve um dos melhores sorvetes que já provei na região, tinha fila na porta.

Isso mudou drasticamente. Mais até que os carros-bomba que explodiram na cidade nos últimos meses, o zumbido de informação/desinformação na capital mostra o clima de paranóia que vivem os sírios, permeado pelo medo do que está por vir.

Para o sírio comum, nenhuma solução parece boa. Mesmo os que se opõem a Assad estão cada vez mais convencidos de que se ele deixar o poder o vácuo criado aumentará ainda mais o caos. É por isso que não dá para levar muito a sério a proposta de se adotar o “modelo iemenita”, ventilada pelo governo americano há poucos dias. A saída negociada do ditador Ali Abdullah Saleh, que passou o poder ao vice, não apaziguou o Iêmen, como mostra o atentado que matou quase cem soldados na semana passada na capital e o crescente separatismo.

Saleh só aceitou o plano depois de um ano de repressão à versão iemenita da Primavera Árabe e de quase morrer num ataque ao palácio presidencial. Na Síria, já foi derramado sangue demais para uma solução negociada. Os rebeldes prometem lutar até a queda do regime. O que começou como um levante pacífico se transformou num guerra civil sectária que deve continuar por muito tempo. Com ou sem Assad.

Tanques do Exército bombardeiam áreas residenciais e as temidas milícias leais ao regime, conhecidas como “shabiha” (fantasma, em árabe), fazem o trabalho mais sujo para Assad, massacrando famílias inteiras. Foi o que aparentemente aconteceu em Houla, um vilarejo sunita cercado por outros de maioria alauíta, a seita minoritária à qual pertence o ditador e boa parte da elite militar síria.

Movidos pela sede de vingança e encorajados por líderes religiosos, alguns baseados na Arábia Saudita, rebeldes sunitas se lançam em missões de vingança. Incapazes de enfrentar de igual para igual o governo, qualquer alauíta vira alvo.

Uma professora de inglês alauíta de Damasco me contou que seu tio e dois primos foram sequestrados e mortos por rebeldes. Há muitos outros relatos parecidos. O pior cenário, de uma repetição do sangrento caos sectário do Iraque, está se materializando diante dos olhos impotentes do mundo.

O incerto futuro sem Assad e a perspectiva de uma longa e custosa ofensiva para superar a massiva defesa antiaérea síria não animam as potências ocidentais a repetir uma intervenção como a da Líbia. O anúncio da expulsão, nesta terça-feira, de embaixadores sírios de dez países, entre eles Estados Unidos, França, Alemanha e Reino Unido, muda pouco a situação para Assad. E ressalta impotência desses países diante da carnificina na Síria.

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A era dos extremos no Egito

Por Marcelo Ninio
25/05/12 07:44

CAIRO – Está pintando a repetição de um velho duelo na primeira eleição presidencial pós-revolução no Egito: militares versus Irmandade Muçulmana.

Se as pesquisas de boca de urna estiverem certas, os dois finalistas no segundo turno serão Ahmed Shafiq, o último premiê do ditador Hosni Mubarak, e Mohamed Mursi, do partido Liberdade e Justiça, braço político da Irmandade Muçulmana. São os candidatos mais antagônicos desta polarizada eleição.

Bate-boca no Cairo: ela xingou os "barbudos mentirosos" da Irmandade Muçulmana; ele mandou os "militares assassinos" que apoiam Shafiq para o inferno (Foto: Marcelo Ninio)

É o pior pesadelo para os jovens liberais que lideraram a revolução no ano passado, sonhando com uma renovação democrática e secular. E torna mais distante a estabilidade política de que a depauperada economia do país tanto precisa.

Acima de tudo, a possível vitória de Mursi e Shafiq mostra a força das duas estruturas políticas mais organizadas do país. A esta altura, o consenso formado nos dias de protestos da praça Tahrir parece estar enterrado num passado distante.

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A incerta eleição egípcia em imagens

Por Marcelo Ninio
21/05/12 07:03

CAIRO – A campanha para a primeira eleição presidencial livre no Egito foi encerrada oficialmente neste domingo num clima de total suspense. A disputa está entre dois candidatos islamistas e dois seculares com passado ligado ao ditador Hosni Mubarak. Mas as pesquisas são consideradas pouco confiáveis e ninguém arrisca uma previsão.

A incerteza é tamanha que um analista do jornal estatal “Al Ahram” apelou para a astrologia, que tem uma longa tradição no Egito. Segundo ele, os astros indicam que os finalistas serão Amr Moussa, ex-chanceler de Mubarak (1991-2001), e Abdel Aboul Foutouh, islamita independente considerado moderado. Ambos são librianos. O futurólogo lembra, porém, que a balança também é o símbolo do partido Liberdade e Justiça, da Irmandade Muçulmana.

Abaixo, imagens que fiz dos últimos dias da campanha.

 
 
 

Comício do islamita Abdel Aboul Fotouh, Cairo

 

Pausa no café para acompanhar uma caravana eleitoral em Kafr Eldawar, norte

  

Homem armado abre caminho em corpo a corpo do ex-chanceler Amr Moussa em Abu al Matamir, norte do Egito

  

Fã de Ahmed Shafiq, Cairo: premiê de Mubarak ganha força na reta final, para desespero dos "revolucionários"

 

Menino fascinado pela campanha em Kafr Eldawar: a primeira eleição democrática ninguém esquece

Novidade no Egito: papo político aberto em mercearia de Abu al Matamir

 

Campanha da Irmanda Muçulmana às margens do Nilo, Cairo

 

Praça Tahrir: torcedores do Al Ahly, o time mais popular do país, pedem justiça pela morte de 74 pessoas num jogo em fevereiro

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O Egito é um pote cheio de mágoa

Por Marcelo Ninio
18/05/12 14:40

Cairo – Praça Tahrir, 19h40 de quinta-feira. A seis dias das eleições presidenciais, o epicentro da revolta egípcia está calmo, as únicas barracas que restaram são de vendedores de bugingangas e não há sinal de polícia ou Exército. Tomo um chá ali perto, no histórico café Riche, ponto de encontro de intelectuais desde sua fundação, há mais de cem anos. Foi ali que o coronel Abdel Gamal Nasser e outros jovens oficiais tramaram a Revolução de 1952, que derrubou o rei Farouk e estabeleceu a república egípcia, o embrião da ditadura militar que ainda respira.

Ouço as lamúrias de um jovem decepcionado com os rumos da “thaura”, a revolução inacabada. Sobram farpas para o ainda venerado Nasser. “Aquilo não foi revolução coisa nenhuma, foi um golpe”, resmunga. “Nossa revolução foi popular, mas acabou levando a outro golpe dos militares”.

O general e os candidatos fantoches, arte de rua na Tahrir (Foto: Marcelo Ninio)

De repente percebemos uma movimentação em direção à praça Tahrir. Pago os dois chás e vamos conferir. A praça mudou. A calma sumiu. Dezenas de torcedores do Al Ahly, o time de futebol mais popular do Egito, pulam numa coreografia de estádio. O canto pede justiça. Muitos usam uma camiseta com o número 74, em homenagem aos mortos no tumulto de fevereiro no estádio de Port Said, que os torcedores afirmam ter sido tramada pelo Exército.

O Egito pré-eleitoral é um pote até aqui de mágoa. Os jovens agredidos querem justiça contra a polícia. Os policiais sentem-se injustiçados com a imagem de vilões e se negam a atender chamados de ajuda, aumentando a insegurança. Agentes de turismo xingam a revolução que fez o seu ganha-pão minguar com o sumiço dos estrangeiros. Islamitas denunciam uma conspiração para lhes barrar a chegada ao poder. E quase todos desconfiam da junta militar.

As pesquisas de opinião são pouco confiáveis, é impossível prever o resultado das eleições. Mas o duelo está reduzido a antigos membros do regime Mubarak e os islamitas. Muito longe do que sonhavam os jovens liberais que deflagraram a revolução. Com tantas mágoas e teorias conspiratórias no ar, uma explosão é um risco permanente.

Hoje a praça Tahrir estava estranhamente calma para uma sexta-feira, ainda mais a poucos dias da eleição. A calma antes da tempestade, me disse um dos torcedores do Al Ahly que perambulava por lá.

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