O dilema do repórter de guerra
23/02/12 14:31Não há uma resposta exata. Coberturas como essas exigem a tomada de decisões difíceis e rápidas o tempo todo, e erros de cálculo são inevitáveis. Resta ao repórter confiar numa combinação de qualidades nem sempre tangíveis, que inclui feeling, experiência, bom senso, uma rede de informantes, além de grande dose de sorte.
Marie Colvin, a lendária repórter de guerra americana morta ontem aos 56 anos em um bombardeio do Exército na Síria, ao lado do fotógrafo francês Rémi Ochlik, tinha tudo isso de sobra.
Mesmo depois de perder um olho na explosão de uma granada no Sri Lanka, ela continuou firme na convicção de que valia a pena correr riscos para mostrar o sofrimento causado pelas guerras.
Assim como ela, acredito que o trabalho do jornalista no local dos conflitos é fundamental para alertar o público sobre as barbaridades que muitas vezes são praticadas em seu nome. E que, sem a presença da imprensa, seriam mantidas no nível esterilizado dos comunicados oficiais.
Peço licença ao leitor para ultrapassar o tamanho usual dos posts e publicar trechos que traduzi de um pronunciamento feito por Colvin em novembro de 2010, numa homenagema a colegas mortos no campo de batalha, em que ela explica a importância da reportagem de guerra. Este é o seu legado.
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“Tenho sido correspondente de guerra a maior parte de minha carreira profissional. Sempre foi um difícil chamado. Mas a necessidade de reportagem objetiva e na linha de frente jamais foi tão imperativa.
Cobrir uma guerra significa ir a lugares dilacerados por caos, destruição e morte, e tentar ser testemunha. Significa tentar achar a verdade em um nevoeiro de propaganda quando Exércitos, tribos ou terroristas se chocam. E, sim, significa correr riscos, não só pessoais, mas pelas pessoas que trabalham perto de você.
Apesar dos vídeos do Ministério da Defesa ou do Pentágono, e toda a linguagem esterilizada que descreve bombas inteligentes e ataques cirúrgicos, a cena no local permanece a mesma há centenas de anos. Crateras. Casas incendiadas. Corpos mutilados. Mulheres chorando por filhos e maridos. Homens [chorando] por suas mulheres, mães e filhos.
Nossa missão é reportar esses horrores com exatidão e sem preconceito. Nós sempre devemos nos perguntar se o nível de risco vale a reportagem. O que é bravura e o que é bravata?
Jornalistas que cobrem combates carregam grandes responsabilidades e encaram decisões difíceis. Às vezes pagam o preço máximo. (…)
Nunca foi tão perigoso ser um correspondente de guerra, porque o jornalista na zona de combate torna-se um alvo.
Perdi meu olho numa emboscada na guerra civil do Sri Lanka. Eu tinha ido à área norte tamil, onde jornalistas haviam sido proibidos, e encontrei um desastre humano não relatado. Quando eu me infiltrava de volta na fronteira interna, um soldado atirou uma granada em mim e o estilhaço atingiu meu rosto e peito. Ele sabia o que estava fazendo. (…)
Muitos devem se perguntar: isso tudo compensa o preço em vidas, sofrimento e perda? Nós realmente podemos fazer a diferença?
Eu encarei essa questão quando fui ferida. De fato, um jornal publicou uma manchete questionando: ‘Desta vez Marie Colvin foi longe demais?’ Minha resposta, na época e hoje, é que valeu a pena. (…)
Hoje precisamos lembrar também da importância de órgãos de mídia continuarem a investir em nos nos enviar a um alto custo, tanto financeiro como emocional, para fazer reportagens.
Nós vamos a remotas zonas de guerra para reportar o que está acontecendo. O público tem o direito de saber o que nosso governo e nossas Forças Armadas estão fazendo em nosso nome. Nossa missão é falar a verdade ao poder. Nós mandamos para casa o primeiro rascunho bruto da história. Podemos fazer a diferença ao expor os horrores da guerra e, principalmente, a tragédia que se abate sobre a população civil. (…)
A cobertura de guerra mudou muito nos últimos anos. Agora nós vamos à guerra com um telefone via satélite, laptop, câmera de vídeo e colete à prova de balas. Eu aponto meu telefone para o sul no Afeganistão, aperto um botão e a reportagem foi enviada.
Em uma época de notícias 24 horas por dia, sete dias por semana, blogs e twitters, estamos sempre de prontidão onde quer que estejamos. Mas a reportagem de guerra ainda é essencialmente a mesma para quem quer estar no local e ver o que está acontecendo. Não dá para obter essa informação sem ir aos lugares em que as pessoas estão sendo baleadas e outras estão atirando em você. A maior dificuldade é ter fé suficiente na humanidade para acreditar que as pessoas, seja, governo, Exército ou o homem da rua, se importarão quando sua reportagem chegar à página do jornal, ao site de internet ou à tela da TV.
Nós temos fé porque acreditamos que fazemos uma diferença.”
Mais pra que correr tantos riscos por apenas uma reportagem e algumas horas de fama?
Nos mostra a verdade sobre o mundo, mais acho que nao precisa a riscar a propria vida por uma reportagem!
…mudar o curso da historia..
Belo tributo a Marie Colvin, cujas palavras aparecem tão límpidas no meio desta confusão..e de cara com a cara que ela pós para defender a vida e sobre tudo o direito a defender o fato de conta-la… Obrigada as pessoas que como você, Marcelo Ninio, põem a cara todos os dias para continuar contando e para oxalá não esquecer e talvez um dia mudar o seu curso.
Marcelo,
Parabéns pela iniciativa e eu espero que consiga fazer um trabalho legal aqui no blog.
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Mas cuidado, que já já aparecerão os chatos ou romanticos exagerados dos dois lados como já acontece no blog do Gustavo Chacra
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Creio que seria uma boa ideia que você abordasse como andam os humores quanto a Tal Law que proibe os religiosos de fazer exercito
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abs
André
André, no momento estou em viagem, mas em breve pretendo abordar com mais detalhes a revogação da Lei Tal, que ainda vai dar muito pano para manga. Só um esclarecimento: a lei não proíbe os religiosos de servir no Exército, ela dá a parte deles isenção do serviço militar. A recente decisão do Supremo de revogá-la significa o fim desse privilégio. Mas a tendência é que haja alguma acomodação política, para manter o status quo ao qual me refiro no post sobre o transporte público em Israel. Na origem da lei, apenas algumas centenas de estudantes de seminários religiosos (yeshivot) teriam a isenção. Mas nos anos 70 o teto foi removido e hoje milhares tem o privilégio, o que obviamente irrita os seculares, que carregam nas costas a responsabilidade pela segurança do país. Os ultraortodoxos alegam que ao dedicar-se ao estudo da Torah, estão fazendo mais pela defesa do Estado do que se pegassem em armas. É possível conciliar o ideal de democracia com dogmas religiosos? Um desafio e tanto.
Abraço e obrigado pela leitura.
Só podemos sentir pela perda e agradecer seu profissionalismo. Sem dúvida, o jornalismo ficou mais pobre.